Saúde

Passaporte sanitário: a lógica e a ciência mandam lembranças!

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No dia 01 de outubro de 2021 foi publicado o decreto N⁰ 56120, que entrou em vigor em 19 de outubro de 2021 no RS. O decreto diz no Art. 8º-A: “Poderá ser exigida comprovação de vacinação ou de testagem contra a COVID-19, para o ingresso e permanência no interior de estabelecimentos, eventos e/ou locais de uso coletivo, conforme disposto nos protocolos por atividades constantes no anexo único deste Decreto, observadas as orientações médicas, sanitárias e o calendário estabelecido pela Secretária Estadual da Saúde”. A mídia, entretanto, divulgou o decreto amplamente com manchetes como: “Apresentação obrigatória de comprovante vacinal começa a valer a partir de hoje no RS”; “Passaporte vacinal começa a ser exigido no RS”, etc…

Problemas cognitivos, de interpretação ou intencional mesmo? Vamos por partes….

Perguntar não ofende, ainda mais quando o questionamento segue a mesma lógica que suporta a proposição do decreto: “… Ações para fins de monitoramento, prevenção e enfrentamento à pandemia de COVID-19”. Para esta finalidade, só o comprovante de vacinação seria válido? Uma breve observação: vou me ater ao comprovante vacinal, pois a testagem contra a COVID-19 só se aplica em determinadas atividades com público muito numeroso, ficando a carteira de vacinação válida na prática para a maioria das atividades sociais.

Voltando à pergunta… Temos todo o histórico de vacinação que, na sua imensa maioria, trouxe avanços inegáveis de saúde pública/coletiva. Por mais que ainda faltem os estudos de longo prazo sobre as atuais vacinas disponíveis para covid, justamente porque esse médio (anos) e longo prazo (décadas) não se passaram ainda, os resultados de efeitos a curto prazo foram suficientes para a autorização e adesão em massa à campanha de vacinação, haja vista os nossos índices: “O Rio Grande do Sul, até 30 de setembro de 2021, atingiu uma cobertura vacinal de primeira dose ou dose única, para a população residente, de 75% e de 49% para indivíduos vacinados com o esquema completo”, segundo o próprio decreto. Nem vamos entrar nesse erro de incluir quem recebeu a dose única da Janssen na porcentagem de quem não está com o esquema vacinal completo!!! Vamos em frente…

Outras medidas, como uso de máscara, distanciamento e higienização frequente das mãos, não tem estudo nível A1 de evidência científica, mas por questões lógicas foram implementados e aderidos por todos. Se a lógica deve ser respeitada, a imunidade natural dos recuperados da covid-19 e testes rápidos de antígeno ou exame PCR negativos atuais (até 48-72h de validade), também por lógica se somariam ao comprovante de vacinação, mas o primeiro nem está sendo cogitado e o segundo só em eventos com volume de público específicos.

Para a imunidade natural, já se tem muitos artigos científicos confirmando sua existência e robustez, o que é chover no molhado, porque essa é a base da imunologia. Se assim não fosse, as vacinas não teriam sido inventadas, muito menos funcionariam. As vacinas geram a “imunidade ativa artificial”, justamente por imitar o que a imunidade ativa natural faz: gerar imunidade, ou seja, proteger frente a um patógeno circulante na população.

Se não podemos partir da premissa de que quem se recuperou está imunizado, mesmo com artigos mostrando 95% de proteção dos recuperados às raras reinfecções (citando apenas um dos vários estudos em diferentes populações mundiais), temos de ser coerentes e, com isso, assumir que quem está vacinado não está necessariamente imunizado também!

Vamos ficar só nesse campo de raciocínio lógico, nem vamos entrar na seara já sabida que: (1) nenhuma vacina (de todas as existentes, para todas as doenças) é 100% eficaz, ou seja, dentre os vacinados, alguns não irão se imunizar de fato (para outras doenças é a minoria, para a covid gira em torno de 5-50%, a depender do fabricante da vacina); (2) Se estamos dando dose de reforço aos primeiros grupos prioritários vacinados, isso mostra na prática esse escape vacinal dessa primeira geração de vacina (especificamente para CORONAVAC); 3. todas as vacinas para covid não são esterilizantes, ou seja, não impedem infecção e/ou transmissão, mas geram proteção individual no caso de infecção (informação omitida no Anexo científico do decreto do governo; apenas citou exemplos de diminuição da transmissão secundária; e nem cogitou os recuperados! Será que é pela transmissão por esses ser próxima a zero?!?)

Mas voltando para a questão lógica, se é pela saúde mesmo e para colaborar com o controle da disseminação do vírus, não seria mais coerente exigir o teste de antígeno negativo ou o exame de anticorpos positivos, independente da vacinação?

Não vamos omitir o fato de que baixos índices de anticorpos circulantes ou mesmo negativados não significam total suscetibilidade dos recuperados E dos vacinados que desenvolveram imunidade, uma vez que células de memória ficam alojadas na medula óssea e nos órgãos linfóides, sendo rapidamente ativadas se o indivíduo for infectado. Com isso, um vacinado OU um recuperado, com exame atual de anticorpo negativo, não poderia ser barrado por falta de imunidade.

Logo, levando todas as variáveis levantadas superficialmente aqui, não seria mais efetivo, se querem exigir alguma “prova sanitária” dos cidadãos, que exigissem o comprovante de vacinação OU PCR positivo antigo (dos recuperados) OU Exame de Anticorpos positivos atual (até 1 ano de validade) OU teste de antígeno negativo atual (até 48-72h de validade)? Assim, não se excluiria ninguém que virtualmente não representa perigo para os demais. Porque, do jeito que está determinado, um vacinado de porte do seu comprovante de vacinação, mas que esteja infectado sem saber, vai conseguir frequentar qualquer lugar, sem ninguém saber que ele está infectado por não ter sido detectado num teste de antígeno, enquanto um não vacinado, mas não infectado, mesmo com o PCR negativo do dia em mãos, será barrado em todos os estabelecimentos. Que real intenção de controle da disseminação é essa?

Só estou perguntando… e gostaria de respostas de quem DECIDE sobre essas regras seletivas…. a comissão científica escolhe a dedo os artigos? No meio de tantas dúvidas e possibilidades, escolher assim é selecionar “evidências da conveniência”.

Com uma cobertura vacinal satisfatória como a atual e que ainda está em andamento, precisa exigir comprovante de vacinação para forçar a adesão à campanha, para “combater as abstenções” das pessoas que não compareceram para a segunda dose??? Inclusive há no decreto “§ 2º Caberá a todos os estabelecimentos, como medida orientativa, a recomendação a seus usuários e clientes sobre a importância da vacinação para COVID-19, observadas as orientações médicas e sanitárias e o calendário estabelecido pela Secretária Estadual da Saúde.” É sério isso? O Estado delegando função aos estabelecimentos através de um decreto que nem mesmo deixa claro se é obrigatório ou não exigir a apresentação dos comprovantes, uma vez que “Poderá ser exigida comprovação de vacinação”, na prática, significa o quê? Que quem quiser exige e quem não quiser não exige? Mas nos locais que decidirem exigir, passa a ser obrigatório ali? Questionável, não?!?

Ainda, o anexo do decreto traz que “A vacinação tem um efeito de proteção individual e coletivo, pois por meio de uma robusta cobertura vacinal da população, é possível reduzir a incidência da covid-19 protegendo inclusive grupos não contemplados nesta estratégia.” Ok! Mas então, mesmo com a adesão maciça da população à vacinação, são os poucos não vacinados que representam perigo aos vacinados? E os vacinados não estão mais protegendo os não vacinados? É muita incoerência para acompanhar.

Além disso, quem não se vacinou foi por escolha (garantida pela Constituição), por já ter sido imunizado pela própria doença, por contraindicação médica, por não ter acesso (mesmo com a abrangente campanha nacional), por estar fora da faixa etária indicada para o período, etc. Aí um evento social ocorre e a pessoa fica excluída por falta da vacinação, mesmo com PCR negativo, mesmo sendo um recuperado? Parece-me que não é pela saúde, não é embasado na ciência, pois se assim o fosse, conhecimentos científicos bem consolidados muito antes da pandemia e os atuais que estão sendo replicados por diversos grupos de pesquisas pelo mundo, não estariam sendo negligenciados e propositalmente omitidos do debate.

*Gabriela T. Scortegagna, bióloga, doutora em imunologia

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